sexta-feira, 11 de agosto de 2017

O Diabo, na terra dos crentes.

cren13Objetivos do artigo: Mostrar como houve a construção do mito do diabo cristão e sua associação com os orixás; Mostrar a ojeriza que várias igrejas cristãs têm pela religiosidade africana;Mostrar o racismo que está por detrás disso; Mostrar o quão intolerante ainda é o cristianismo. Observação: O termo “crente”, neste contexto, refere-se aos religiosos em geral, e não apenas aos evangélicos. “Houve, com o decorrer dos séculos, um sincretismo religioso, ou seja, uma mistura curiosa e diabólica de mitologia africana, indígena brasileira, espiritismo e cristianismo, que criou ou favoreceu o desenvolvimento de cultos fetichistas como a umbanda, a quimbanda e o candomblé”.
No livro “Orixás, Caboclos e Guias – deuses ou demônios?”, Edir Macedo expõe a sua visão, e a de muitos cristãos, sobre o que representam as religiões afro-brasileiras em nossa sociedade. Mas, engana-se quem pensa que foi Edir Macedo o primeiro a demonizar essas religiões. Diversos outros pregadores, protestantes e católicos, já travaram lutas contra as “forças das trevas”.
Os cristãos, e em especial os evangélicos, geralmente, reivindicam para si a exclusividade da “comunhão com Deus”, desconsiderando os ensinamentos das outras religiões e filosofias. Contudo, o curioso é que o “diabo” nunca tem um nome grego, romano, escandinavo ou mesmo árabe ou chinês. É quase sempre um nome africano a designação dos espíritos das “trevas”. E este “diabo” é idealizado com as histórias mitológicas africanas, simbolizado com elementos litúrgicos africanos, e personificado em figuras místicas e antropomórficas também africanas.
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Os deuses gregos não representam perigo algum aos ditos “cristãos”: “Quero dizer com isto, que cada um de vós diz: Eu sou de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, e eu de Cristo. Está Cristo dividido ?” (1 Coríntios 1: 12,13) Mas, as divindades africanas são uma “ameça”: “Para evitar atritos com a Igreja Católica, os escravos que praticavam a macumba, inspirados pelas próprias entidades demoníacas, passaram a relacionar os nomes dos seus deuses ou, para ficar mais claro, demônios, com os santos da Igreja Católica. Assim, podiam escapar à grande perseguição que a própria Igreja Católica moveu contra eles (…)” (Orixás, Caboclos & Guias – deuses ou demônios?, 15° edição, cap. 5, pág. 44). Apolo: referência bíblica em 1 Coríntios 1: 12,13.
Culto a Iemanjá: algo “demoníaco” para muitos cristãos.
É certo que há uma rivalidade entre evangélicos, umbandistas e candomblecistas. Esta rivalidade é fomentada pelas pregações proselitistas de boa parte dos evangélicos. Os evangélicos, em especial os pentecostais, parecem ter elegido as religiões afro- brasileiras como seus principais adversários. Algumas igrejas pentecostais parecem ter isso como meta prioritária, não se cansando de “combater” aquilo que consideram como o “culto aos demônios”.
Os pentecostais usam de todas as formas possíveis para reprimir os cultos afro usando, inclusive, de preconceitos mesquinhos. Os mesmos preconceitos que, num passado recente, também eram vítimas. É que os pentecostais têm o seu projeto de poder (tal como a Igreja Católica no passado), e para validá-lo precisam eliminar qualquer adversário. E como eles não se acham fortes o suficiente para enfrentar a Igreja Católica, destinam toda a sua intolerância sobre a umbanda, o candomblé, etc… Contudo, não podemos deixar de falar da repressão religiosa empreendida pela Igreja Católica no Brasil até o início do século 20.

A construção do mito
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O diabo, na concepção cristã, é o ser espiritual que representaria o mal absoluto. Ele seria a origem de todas as desgraças existentes no mundo. O diabo também poderia ser compreendido como a antítese de cristo (ou o próprio anti-cristo). De qualquer forma, sua estratégia seria corromper a humanidade seduzindo os seres humanos de todas as formas possíveis. Portanto, teríamos uma espécie de “’batalha espiritual”, numa perspectiva mais fundamentalista. Por conseguinte, o cristão autêntico deveria combater o maligno de todas as formas, bem como não ceder às possíveis tentações. A idéia de um diabo, como um ser espiritual (ou transcendental), não é exclusividade do cristianismo. Contudo, esta religião moldou de uma forma bem peculiar esse “diabo”.
O diabo cristão não só tem formas antropomórficas, mas desejos, sentimentos, atitudes, e até ideais. Para justificar os possíveis intentos do demo, criam-se mitos, propagam-se lendas, e consolidam-se superstições. E este diabo cristão foi elaborado a partir das características dos deuses pagãos do “Velho Mundo”. Nas antigas religiões, os deuses tinham os seus mitos, e a sua justificativa social. Na mitologia grega, por exemplo, Hades era o deus do mundo subterrâneo, lugar onde todas as almas, as “boas” e as “ruins”, teriam o seu derradeiro destino.
Na Terra de Hades, havia um lugar chamado de “Campos Elíseos” para onde iriam as almas “boas”, era o caso heróis, dos adoradores mais dedicados, dos seres tidos como “mais evoluídos”. Mas, havia outro lugar chamado “Tártaro” para onde iriam as almas “ruins”. O Tártaro era semelhante ao inferno cristão, um lugar, portanto, de trevas, medo e sofrimento eterno.
Nas antigas religiões da Pérsia, Egito e Índia também havia a crença na imortalidade da alma, bem como um lugar reservado para os considerados pecadores. Entre os povos do norte da Europa (rotulados pelos romanos como “bárbaros”), a crença na reencarnação era mais comum. Todos estes povos tinham suas próprias representações iconográficas (imagens) acerca de suas divindades. Eram construídas estátuas e monumentos, quadros eram pintados, e ambientes eram decorados com motivos religiosos para o culto aos deuses antigos. Estes deuses podiam ser representados com uma imagem humana ou de algum animal dito especial.
Alguns dos deuses antigos tinham uma representação bem peculiar, tais como Cernunnos, o deus cornífero. Cernunnos tinha cifres em sua forma humanóide, e podia ter também a forma de um touro (ou algum animal forte e portador de chifres). Ele era um deus do panteão celta (povo europeu antigo), considerado como protetor e senhor das florestas.
Com o crescimento do cristianismo, os cristãos, outrora perseguidos, passaram a ser os perseguidores. Para justificarem os seus preconceitos, começam a demonizar os deuses das antigas religiões pagãs. Pouco a pouco, o diabo passou a ser vinculado aos antigos deuses. O diabo, antes um ser sem forma definida, passa a ter uma forma física, a saber: pés de animal, asas de morcego, rabo de boi, garras afiadas, enormes dentes, olhos grandes e ameaçadores, chifres, e uma cor quase sempre avermelhada, amarronzada, ou enegrecida.
O diabo também ganha alguns objetos de “ofício”, tais como o tridente, tumbas, caveiras, um cetro fálico, dentre outras coisas. Além disso, poderia ser representado numa carruagem de fogo puxada por bestas feras. Com o tempo, cresce a crença de que o diabo era o “senhor” da noite, dos prazeres “carnais”, e da morte.
É interessante dizer, portanto, que a imagem do diabo foi elaborada a partir dos elementos representativos de vários deuses ditos pagãos. Nada foi original, pelo contrário, o diabo enquanto ser mitológico cristão é um plagio de uma coleção de mitos, símbolos, e superstições dos povos da Antiguidade.

O entendimento do mito
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Ora, no “Novo Mundo” não seria diferente, pois o diabo cristão também adotou as feições dos deuses das religiões nativas antagônicas ao cristianismo. A principio, foram os deuses indígenas os primeiros a serem demonizados, tais como Anhangá (ou Anhangüera), um deus do panteão tupi-guarani, erroneamente identificado como um “espírito malfazejo”. Com a entrada maciça dos povos africanos, em substituição a mão de obra escrava indígena a partir do século XVII, foi a vez dos deuses africanos serem renegados.
Os europeus, em sua maioria, viam os povos primitivos (indígenas e africanos), como seres “inferiores”. Contudo, alguns europeus não se demoraram a tentar disseminar a sua religião, e conseqüentemente a sua cultura, entre os povos nativos. Ora, qualquer forma de discriminação se torna completa quando o discriminado adere à ideologia do colonizador. Não foi uma atividade missionária ingênua e desinteressada que introduziu o cristianismo (em especial, o catolicismo) em nosso continente. Mas, sim o poder das armas bélicas, e uma descaracterização cultural dos povos dominados, com um posterior processo de aculturação e dominação sócio-econômica.
Houve um processo de sincretismo religioso no Brasil, e em outras partes da América Latina. Mas, limitando-nos ao contexto brasileiro, podemos dizer que os negros africanos foram forçados a camuflarem as suas práticas religiosas para evitarem maiores hostilidades. Com isso, os orixás passaram a ser associados aos deuses católicos. O problema não é o sincretismo em si, pois é possível que duas religiões se complementem, tal como acontece com o xintoísmo e o budismo, no Japão. A questão é que a igreja católica sempre discriminou as religiões africanas, sempre as demonizou, de tal forma que não é coerente afirma-se, ao mesmo tempo, afro religioso e católico, pelo menos enquanto a igreja não rever seus conceitos.
Da mesma forma como várias entidades indígenas foram demonizadas, os orixás africanos também foram alvos de um estigma, e que foi imposto não por simples ignorância ou fundamentalismo religioso. Houve um processo de desumanização dos povos africanos que foram escravizados. Os europeus acharam que deveriam “civilizar” os povos nativos, mas, claro, impondo a eles a sua própria visão de mundo. O problema é que esta visão de mundo só agravou a discriminação, pois introjetou nos povos ditos primitivos um auto preconceito. Estes povos passaram a se ver como “pecadores”, destituídos de uma “graça” divina, e em casos extremos como “sujos” e dignos de uma punição.
A independência do Brasil não representou uma autonomia cultural e ideológica, pois as elites dirigentes se viam como uma extensão – uma filial da metrópole, digamos assim – dos antigos colonizadores, vendo-os como um modelo a ser seguido. Logo, a estrutura social continuou a mesma, e conseqüentemente a escravidão. Com o tempo, o povo passou a elaborar os seus princípios e a codificar os seus valores morais e sócio-culturais tendo por base o ponto de vista europeu. Isto em si não é de todo ruim, pois de fato os europeus fazem parte da composição étnica de nosso país. Porém, esta aculturação se deu num processo opressor e penoso para muitos brasileiros.

Exú: de orixá mensageiro a diabo cristão
Segundo especialistas no assunto, dentre os vários orixás cultuados pelo povo nagô, aproximadamente, cinqüenta se consolidaram no Brasil. Convém destacar que a crença nos orixás é específica das populações nagô, que compartilhavam da mitologia iorubá. Havia etnias africanas com outras cosmovisões, inclusive alguns muçulmanos, estes, porém, em quantidade bem reduzida. Contudo, os orixás são as deidades africanas mais populares no Brasil.
Dentre os orixás mais incompreendidos está Exú (também conhecido como Legbá ou Elegbara entre outros nomes). Este orixá foi erroneamente associado ao diabo cristão ou Satanás. Tal equívoco foi fruto de uma incompreensão dos religiosos cristãos quando descobriram a religiosidade dos povos da África Ocidental.
Exu é o orixá mensageiro entre o orun (mundo espiritual) e o aiye (mundo material), e que era encarregado de levar as oferendas para os outros orixás, e trazer aos fiéis os recados deles. Exú também tinha a função de proteger os fiéis contra possíveis infortúnios. De acordo com o que se conhece da mitologia ioruba, Exú era um ser brincalhão, irreverente e astuto. Além disso, era o deus da fertilidade, o que lhe conferia uma certa sensualidade. Podemos traçar um paralelo entre Exú e o deus grego Hermes.
Hermes era um dos deuses do Olimpo, filho de Zeus e irmão de Apolo. Hermes tinha como uma de suas atribuições conduzir as almas até o rio Aqueronte (ou Estige, em algumas versões), lugar onde se encontrariam com o barqueiro Caronte para, então, as almas serem conduzidas ao reino de Hades. Portanto, Hermes era um deus mensageiro que mostrava o caminho entre o mundo material e o mundo espiritual, podia inclusive transitar entre os dois mundos. Exú, por sua vez, promovia o intercâmbio entre os dois mundos (apesar de não conduzir almas ao mundo dito subterrâneo). Exú não tinha qualquer ligação mitológica com lugares ”infernais”. Contudo, o deus grego é encarado como uma mera mitologia escolar, enquanto Exú ainda é visto como um “demônio”. Outra associação é possível: entre Exú e o deus grego Príapo.
Príapo era o deus da fertilidade, sendo representado por um falo humano. Segundo a mitologia, Príapo era filho de Dionísio e Afrodite (na versão mais aceita), e foi alvo dos ciúmes de Hera (uma deusa que não admitia que Afrodite fosse mais admirada do que ela). Hera fez com que Príapo nascesse com uma deformidade: um falo muito grande e desproporcional ao corpo. Exú, por sua vez, também era deus da fertilidade, e apesar das diferenças mitológicas, tinha uma representação fálica. Tal representação em si não é maligna nem benigna, sendo adotada, inclusive, por outras culturas. Logo, a possível conotação sexual de Exú não o torna indigno.

A libertação do mito
Atualmente, vemos pregadores evocando os orixás em cultos exorcistas como se estivessem evocando o próprio Satanás. Pessoas em transe psicótico embravejam dizeres que teriam como autores “entidades” como Exu, Oxossi, Olorun, etc… Milhões de pessoas ainda acreditam que as religiões afro-brasileiras são religiões “satânicas”, e que devem as suas precariedades e sofrimentos às suas origens africanas. No aurora do século XXI, assistimos ao recrudescimento do preconceito em relação a religiosidade africana. Isto é, um grande aumento, e com uma aversão que é desproporcional a capacidade de defesa dos praticantes afro-brasileiros.
A aversão às religiões de matriz afro extrapola as barreiras religiosas porque ela está impregnada do racismo contra as populações africanas. Esta aversão é o resultado dos mais de 300 anos de escravidão, e de um processo de aculturação que fez com que os brasileiros elaborassem seus princípios e valores tendo como modelo o que era mais aceito pelos antigos colonizadores europeus. Logo, para ser aceito era necessário se parecer com os europeus, viver como os europeus, e crer nos deuses europeus. Não podemos entender o sincretismo religioso como uma mera camuflagem. Mas, também, e principalmente, como uma tentativa de fuga de uma possível opressão perpetrada pela sociedade. É o medo da reprovação social que faz com que as pessoas se digam católicas “não-praticantes”.
Foi a instituição religiosa Igreja Católica Apostólica Romana quem primeiro demonizou as crenças nativas africanas. E, atualmente, são as igrejas pentecostais as que mais se dedicam ao combate às religiões afro. Existem religiões pentecostais que têm na completa eliminação dos cultos afro um ideal a ser seguido. Evidentemente, isto não é uma generalização, pois há cristãos evangélicos tolerantes e sem preconceito. Contudo, é inegável que para muitos evangélicos o “diabo” tem nome africano. O curioso é que nas religiões pentecostais há grande percentual de afro-descendentes (pardos e negros), o que revela que a aversão aos orixás também extrapola as barreiras de classificação “racial”.
O futuro para as religiões afro-brasileiras parece ser incerto. Há algumas iniciativas de valorização e autodefesa, porém nada que seja um consenso entre os seguidores dessas religiões. Diante de uma perspectiva de futuro não muito animadora, o que poderia ser feito para acabar com um estigma secular ?
Penso que a melhor resposta só pode ser dada pelos praticantes dessas religiões, e que deveriam ser os principais interessados na valorização de sua religiosidade. No entanto, poderia tecer algumas considerações pessoais.
Entendo que as religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé, deveriam passar por uma ampla reformulação de suas liturgias. Eles deveriam fazer um resgate da cosmovisão africana original, fazendo as devidas adaptações à sociedade atual (quem se prestaria melhor a este papel seria o Candomblé, pois a Umbanda já nasceu sincrética). Eles deveriam também adotar uma nova linguagem, tornando o seu culto mais compreensível – e simpático – para um público mais amplo e secular. Além disso, dar uma nova roupagem ao culto afro, tirando-lhe o seu aspecto tribal, e dando-lhe uma feição mais moderna. Os seguidores deveriam perder a vergonha da religião, assumindo- a integralmente (obviamente, sem perder o bom senso). São mudanças simples, mas altamente eficazes.
Os pentecostais até os anos 70 eram uma pequena minoria, e alvo de estigma e desvalorização. Hoje, os pentecostais são o segundo agrupamento religioso do país, obtendo um crescente poder político. Isto poderia acontecer com as religiões afro-brasileiras ? Só os praticantes dessas religiões poderão dizer…

Referências bibliográficas:
Prandi, Reginaldo. “Exú, de mensageiro a diabo – sincretismo católico e
demonização do orixá Exú”. São Paulo, Revista USP, 2001.
Prandi, Reginaldo. “As religiões afro-brasileiras e seus seguidores”. Rio Grande
do Sul, Revista Civitas, 2003.
Macedo, Edir. “Orixás, Caboclos &Guias – Deuses ou demônios”. 15° edição. Rio
de Janeiro, Universal Produções, 2004.
“O exorcismo é a atração da noite”. São Paulo, Revista Época, 2003.
Ministério Apologético Cristão – cacp.org.br

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